24 outubro 2006

Isto

Uma fazia anos. Outra disse-lhe que me viesse dar um beijo. Veio, aceitei, fiz-lhe votos de muitos anos a contar a passagem de outros, que tivesse um dia leve, felicíssimo, como convém a qualquer miúda de 13.
Nos corredores, quase me canso de ouvir "Stôra!", "Olá, stôra!", "Stôra, tudo ok?". Duvido que muita gente distribua tantos olás... (Chego a ganhar cãimbra no maxilar de tanto sorrir de passagem nos intervalos...).
Algumas disseram «Humm, caparfuuumee fresco, stôra!... Qual é?». Escrevo-lhes sempre as marcas no quadro. Se é rapaz a elogiar, se já é espigadote, matreirito, de 16, 17 anos, sugiro que compre igual para a namorada. Adoram a franqueza de quem lhes ensine pequenos "nadas" tão válidos - no que toca às estratégias sentimentais - como qualquer matéria-chave num exame.
(...)
Tudo perfeito no trabalho, na vida, na rua, em casa.
Depois, numa certa hora, ELE. Chega. Fala. Derrete-me. Analisa-me contornos e mede de olhares os lugares certos para poiso de mãos em ânsias, diz-me até ao âmago dos olhos que já lhe pertenço, prepara o minuto certo para o seu laço, faz-me amor - que retribuo em pensamentos longínquos apenas pressentidos do calor que ao rosto aflore - devagar, com mestria, degustando. Adivinho a que lhe sabe a boca: ao vinho que não bebo, aos cigarros que comigo partilhará, ao seu perfume de vontades de descascar roupas que penduraremos pelo tecto, em danças de olhares cravados, em noites de choro doce. Terá o seu nome em profusão, os lábios onde os queira, as mãos torneando-me, coluna jónica, base dórica, barro macio que ao toque cede de tão tenso. Morno. Perto. É já ali, o tal Jardim...
Descobre-se que se ama. Vai-se com calma. Uma calma que intimide um leão a ponto de quase se sentir inseguro: ouve-nos farrapos de conversas casuais, sorri com ar amistoso, esconde o brilho dos olhos que já nos mostrou naquele dia em que nos fez gargalhar com a sua desenvoltura. Ouve atentamente, tal como o ouvem todas as outras mulheres em volta com um mínimo de fantasia ou simples centelha de vida. Sabemos como o olham: gula! E mata-nos de gula, um determinado homem - entre outras coisas, beijá-lo da cabeça aos pés é a versão soft - mira e remira lábios, dentes, pernas, andar, o homem que se volta se passamos, que nos elogia com sorrisos, mas dá-se por ele intrigado, pensando porque não lhe caímos já aos pés. E ama-se. Assim, ama-se. Com ardor e sem fúrias; com lentidão e saboreando quando temos de falar-lhe. Os olhos prdem-se no riso, nos lábios, nos dentes, do charme dos cabelos já com fios de prata aqui e ali, com as marcas do tempo e dos vícios (quantas mulheres já terão sido presa desses lábios, sequiosas dessa língua, ardentes do toque desses cabelos numa ou na outra ponta de um seio, ao de leve, no encanto dos começos, inquietas dos dedos esguios, morenos e ágeis sobre o rodado de uma âncora, mãos que imponham uma rota de colisão preparada desde as primeiras respirações em uníssono na mesma sala?). Sabe-se que é aquele, que a frieza e a compostura levariam, em momentos-chave os nossos passos ao seu covil, que se mudariam santo-e-senha, mas que nunca nos terá, ah, nunca nos terá. O soberano pode derreter-nos de inclassificável delírio, mas nunca, oh, nunca nos terá... Um dia, perceberá que não se enlaça uma mulher que fez pacto de sangue. Ir até aos limites, e, lá chegada, voltar costas: antes de ti, meu amor, já eu existia una, unívoca, inteira no abandono. Não, delícia, não, amor, não, loucura: nunca te pertencerei por inteiro. Por isso, por falarmos em silêncio, sei que hesitas. Hesita, pois, eu saboreio. Sabes que as como eu intimidam por não lhes ser vital partilhar cama, mesa, filhos. Boa sorte com o meu tradicionalismo: fazendo o convencional, nunca sairei ferida. A chama que trago dentro não se aprisiona: o tantrismo urge o longe. Sabes que não pertenço: nem a pais, nem a irmãos, nem a homens - sejam eles, como tu, semi-deuses sugando-nos horas de sono, enchendo-nos as infinitesimais partículas da imaginação, medindo-nos palmo a palmo... Aqui onde não me tens, sabes. Sabes porque viste no fogo do nosso primeiro olhar cruzado que és tu - quem me domina - o soberano que uma presa levará para o Outro Mundo, para que esqueça o tempo, todas as outras fêmeas, quem é, em que acredita, com que sonha. Temo pela tua alma, quando sair de perto. Não me sigas. Só eu sei onde me escondo e tu, tu, amante eterno, não és bem-vindo nesse hemistíquio do verbo que me enreda o nome. Delícia, foge enquanto podes. A tudo o mais serei alheia, não ao mel da tua voz, não às tuas pernas que dominam, não aos teus braços octopussianos que desejo conhecer em enlace de asfixia. Queres mesmo entrar nesse reino? Deveras? Segura-te: nem todos arriscam tanto. Bebe do copo que te estendo e ficarás só, entregue ao passado. Despenteado, nem saberás que vendaval te tomou, perdido da razão por tempos. Sou eu a que procuras: a tua Mulher entre todas. Observa: estás marcado e eu nunca levo lastro. Vive-me e mima ter-me. É curto, o tempo. Uma destas noites terás privilégios de rei, suserano meu, semi-deus, homem-total, menino pequeno... Lacrimejo de luxúria, agracio-te com o Graal: bebes comigo?...