01 novembro 2006

Prece

Face ao mar-oceano, carta de marear nas mãos, escolho as minhas rotas traçadas sobre as águas que rasgo, eu, mulher de proa, olhos perfurados, SINTO, recolho as benesses do culto prestado. Olhos húmidos pelos que já fizeram a travessia e repousam sob o pó - recordei-os hoje, na igrejinha de talha dourada onde me deram por nome Virgínia-Inês Alva, joelhos na pedra fria perante A Presença - agradeço tudo o que veio: o bem imenso que me dói pelo esmagamento de tanta paz; o mal que deixei crescer neste casto, glabro peito para o conhecer já depois dos 33 e evitar as suas formas e avanços; o amor que dei sem nada receber excepto a frieza quando era por calor que implorava todos esses dias em que o meu nome na tua boca se foi esbatendo (eu queria ser sempre uma deusa aos teus olhos, tudo fiz para ser cada dia, cada noite a primeira, não sei mais, não sei mais, não sei mais... esgoto-me); o vazio desde a infância por não saber porque me puseram nesta Terra e que desígnios eram estes que me trazem a cada golfada inspirada a noção de um Bem-Maior; a noção exacta do peso do meu riso, do veludo do meu olhar, do deslizar dos meus passos, do sereno da minha voz, das santas mãos que me tocam no quotidiano, o riso dos outros de volta - espelho meu, da que sou - de todo o amor que tenho recebido. Privei-me dele, do Maior-afago, da simpatia, da ternura a não ser por crianças e pássaros, gatos e veios de folhas na contraluz e poças de água no chão reflectindo a abóbada celeste, e mármore e granito e brilhos na terra salpicada de orvalho e o silêncio das esferas vento e mar e areais imensos e risos fundos até ao fim do mundo e ao âmago dos olhos e amor por ti e amor por ti e amor por ti, ao ponto do quase-filho, implodi no peito a minha Luz, amordacei a ternura, fechei-me à Revelação, afastei do Potala os passos incertos. Aninhei-me no ventre materno e cortei pulsos e vesti-me de negro e cortei a minha boca desde uma orelha até ao lado e prostrei-me e bati-me pela frimeza cega e fui guerreira (e como sangrava por dentro, Pai!) e escondi a minha beleza e fiz-me pequena e deixei que outros brilhassem por mim e humilhei-me e desejei que a terra me engolisse o magnífico do corpo e não quis outro corpo além do teu e atravessei o deserto e vi que estava só.
Fiz todo o percurso inverso.
Amadureci como o fruto líquido a ponto do rebentamento de prazer - e para ele, apenas para o prazer fui feita, eu, a que se negava ao seu destino grácil, óbvio, premindo-me a cada passo, sempre que desviei o olhar e fui desejada até aos paroxismos das loucuras que finjo não ver por preservação de nergias espirituais, para que frutifiquem os actos certos com as pessoas certas, em noites de amor em mantras, suculento tantrismo de quem tem os dons, as artes da sedução nas mais ínfimas células - fiz-me virtuosa.
Regressei a mim.
Recolho agora os frutos e peço à Presença, Gracioso Kundun e a Maat e aos Elementos, perante os quais queimo todo o incenso que o dinheiro compre que me façam ser capaz de tomar contra o peito este imenso braçado de rosas de Alexandria que a vida me entrega. Esteja eu à altura dos desafios que me colocam no côncavo das mãos, tenha vivos os que amo em tempo imenso e, sobretudo, regresse sempre a Casa, angariando infância, espalhando ternuras líquidas pelos olhos, em Acção de Graças. Descalça, as cinzas dos prazeres epicuristas nos cabelos. Olhos pintados de negro, cabelos em oferta, hena nas mãos, ventre nu, olhos e corpo acesos. Silêncio.
.Dedicado à Grande-Dama do brilho na escuridão: uma Mulher sidera.