05 outubro 2006

Braseiro

Seguras-me a porta.
Dás-me passagem.
Sorris-me ao perfil, ao fundo dos olhos, enlaças-me em sonhos o corpo.
Crescem-te peito, pupilas, gestos largos, histriónicos, cresce-te a voz em riso.
Fazes-me sentir uma sumarenta actriz italiana do pós-guerra, uma diva, a melhor entre as fêmeas, objecto do teu culto, ninfa que te agracie o leito, exquise gourmandise que sabes que sou sob esta capa de gelo...
Observas-me nos lugares por onde circulamos.
Já não sei como evitar-te o olhar de fogo. Engulo em seco, mimo indiferença
(I burn all over... Ce désir m'étouffe... Santo Cielo, qué barbaridad!)
És o mais belo animal masculino que me foi dado ver, povoaste-me os dias, as noites, cortas-me o sono, cortas-me a pele a cada mirada, tens olhar perverso de pirata manhoso, o málaandro do Brásiu, mãos esguias e firmes, corpo exprimentado, andar de profissional de sarilhos, olhar perdido de Maltese, cansaço, agastamento, corrosiva solidão nessas noites que aposto plenas de deusas do sexo que se te oferecem.
E contudo, quando mimámos cumprimentar-nos de mão, rindo, disfarçando desejos que se nos sobrepõem, cravaste nos meus os teus olhos, a minha palma abrasou-se contra a tua, liquefiz-me no teu peito, correste-me nas veias...
Como explicar isto?...
Esta mulher falsamente cinzenta e escondendo o encanto acriançado por detrás de penteados e roupas formais dançou só para ti, debulha-se de roupas, está disposta a tudo, já te pertence. Aconteça o que acontecer, preparada para o embate de já pertenceres a outrem e ter de abdicar, mas nesse lugar onde só Deus lê, a alma que me enegreces de paixão nunca sentida, doa-me no peito como ferro em brasa: já te pertenço. Não sei como, identificam-me estes sentidos o homem-momento no preciso segundo. Instintiva, recolho garras que não tenho, faço-me anjo demoníaco, derreto-te aos poucos, já fizemos de tudo, abarcando o Inferno com riso lascivo. Vi-te, descobri-me só.
Esta miúda tímida que me resguarda de semi-deuses do teu porte maléfico sabe respeitar o sagrado laço de outros, mas está - entre outras coisas - disposta a ser a tua Bonnie, meu Clyde; armada apenas da pele recobrindo toda a extensão do corpo que acordaste, fará com que esqueças que a mulher te é ser submisso; prepara-te, pois, para esquecer quem és, o que imaginas que dominas, a terra de onde és. Segura-te, rapaz, moço, jeitoso: criaste uma monstra!
Suave, com beijos pequenos e lentos, vou fazer-te meu para sempre. Recolhe a alma: será essa a tua dor-mor quando te peça liberdade. Tu, cativo que me tem cativa, nem sonhas que surpresas te reserva a química destes meus olhos castos de esperas pela palma da mão certa. Hoje, fiz-te meu para sempre.
[Isto passa já. Sonhar é tão bom... Raios, amanhã acordo às seis...]
E então, despenteias-me ou quê?... Rrrrr' nhauuuu...